PCP: Os novos, os velhos e os ex-comunistas saneados
A nova geração tem entre 14 e 19 anos e acredita que o comunismo é o futuro. Outros, mais velhos, desiludiram-se com o PCP, mas continuam "camaradas". Para o ex-deputado algarvio Carlos Brito, a situação de crise económica que se vive pode ser uma lufada de ar fresco para o partido.
"Camaradas, o comunismo pertence ao futuro. Palavras do Cunhal". A frase, carregada de convicção, é de Pedro Carruna, um rapaz magro de 19 anos que não consegue parar de gesticular enquanto fala. "O meu avô guarda religiosamente a farda da Mocidade Portuguesa. E o meu outro avô foi preso político em Caxias e soube bem o que era a tortura do sono". A memória transmite-se oralmente sob o olhar atento de Karl Marx, cujo retrato pontifica na parede daquela sala de aula em que doze jovens se preparam, com lápis e cadernos em punho, para a lição de Ofensiva Ideológica. Ouve-se uma música de Ary dos Santos.
Na sede do PCP do Barreiro arrancou o Curso de Formação Ideológica para jovens do ensino secundário, organizado pela Juventude Comunista Portuguesa (JCP) da região de Setúbal. Os militantes, dos 14 aos 19 anos, abdicaram dos tempos livres para aprender a história do partido, a doutrina Marxista-Leninista e a organização interna da JCP. São aulas dadas por camaradas. E para camaradas. Laura Laurentino, estudante de 16 anos, justifica a sua presença: "Nem tudo o que nos dizem sobre Salazar e o comunismo é verdade". O curso serve para aprofundar os valores do comunismo e também para autodefesa "contra a ofensiva ideológica da qual somos alvo nas escolas", garante Laura. "Dizem que Salazar foi um bom ministro das Finanças mas depois não dizem que os cofres do Estado estavam cheios enquanto havia taxas de analfabetismo brutais".
Pedro Carruna tem outra justificação: "Às vezes, as coisas que se passam são deturpadas pela comunicação social. Há um boicote à informação. Por exemplo, nas manifestações entrevistam estudantes que parecem que não saber porque estão ali. E não é verdade." A Formação Ideológica surgiu em Portugal logo após o 25 de Abril na Escola do Comunismo, que funcionava num edifício no Lumiar, em Lisboa. Na década de 80, o advogado Domingos Lopes era professor da disciplina Movimento Comunista Internacional. Saiu do partido em Setembro de 2009, depois de 40 anos de militância: "Hei-de morrer comunista. Apesar de não estar de acordo com orientação da direcção do partido, continuo a acreditar num ideal de humanismo."
Antes de aderirem ao partido, os jovens querem saber do que trata a ideologia. Nos livros e na internet procuram as ideias Marx, Lenine e Engels. Há quem leia Estaline, Trotsky e Mao Tsé Tung . E também quem pesquise outras correntes políticas: "Estudei uma série de coisas para ver onde me enquadrava melhor, até partes do "Mein Kampf" [A minha Luta, de Adolf Hitler] para ver o que era o nazismo ao Capital. Como o meu curso é Gestão e Administração Pública, também aproveitei para estudar várias correntes económicas como as de Friedman, Samuelson e Keynes", conta Hugo Freire, de 27 anos.
Nos centros de trabalho do PC, cêtê's na gíria, cruzam-se gerações de comunistas no debate das ideias. No centro de trabalho da Amadora, Hugo Freire e o primo, Nuno Gama Freire, 19 anos, jogam xadrez. Silvestre da Costa, de 80 anos, serve uma bebida a Fernando Ramos, o vereador de 58 anos da Câmara Municipal da Amadora. "Há muita gente que acredita no comunismo mas tem medo. O medo está a voltar a instalar-se", vaticina Fernando Ramos. O frigorífico e o fogão que estão no bar do cêtê da Amadora foram oferecidos ao partido por Silvestre da Costa. Durante três dias por semana, o ex-mecânico serve os camaradas: "Adoro futebol mas, como me calhou o domingo, em seis anos só vi dois jogos do Benfica para poder vir para aqui." Em cima do balcão, uma bola cheia de trocos convida a ajudar o partido: "O partido tem paredes de vidro. Eu sou transparente!"
A independência financeira do PCP é um dos orgulhos dos militantes. Nas eleições de 2009, Nuno Gama Freire esteve, pela primeira vez, nas mesas de voto: "Fiquei mesmo de peito inchado quando assinei o cheque de 70 euros, à frente de todos, em nome do partido". O trabalho dos militantes "é sempre voluntário". Por exemplo, toda a construção da festa do Avante. "Não é voluntariado, chama-se militância. E é uma questão de coerência com o que defendemos. Não faria sentido pertencermos ao partido e não lhe darmos o dinheiro que recebemos. Depois o partido financiava-se como? Ia pedir dinheiro aos capitalistas para depois vir para a rua lutar contra eles?", questiona Hugo Freire. A quotização é a maior fonte de riqueza e também o maior segredo do PCP. Cada militante dá o que pode. "Até pode ser dez cêntimos", diz um militante.
Todos estes comunistas partilham uma visão sobre a economia. Defendem a nacionalização dos sectores chave. E avaliam as crises cíclicas do capitalismo previstas por Marx. "Ser comunista nos dias de hoje é o mesmo que ser há 40 ou 50 anos atrás, o ideal é o mesmo, os objectivos são os mesmos. A sociedade em Portugal mudou muito mas o ideal, e aquilo que o PCP defende, é o mesmo. Agora como há 89 anos atrás, quando o partido foi criado", diz Fernando Ramos, vereador na Amadora. Os lemas épicos, as frases de combate e os ideais de há séculos, como a liberdade e a igualdade, são disparados a cada conversa. Com orgulho.
Dos mais novos aos mais velhos, as mesmas frases repetidas. "Quero uma sociedade sem explorados nem exploradores". "Acredito numa sociedade sem classes, mais justa". "Os que lutam nem sempre ganham, os que não lutam perdem sempre". "Só com a luta de todos vamos conseguir alcançar uma sociedade comunista. É possível. No tempo da escravatura também não se acreditava que era possível." O mantra é comum.
O funcionamento deste partido assenta no "centralismo democrático". O significa que as opiniões se discutem nas bases e vão sendo debatidas pela hierarquia partidária até chegarem à direcção, o órgão que delibera "a favor da opinião da maioria". A opinião maioritária é aquela que, no PCP, tem legitimidade para sair à rua. E é aquela que o militante defende - ainda que possa não concordar. "É o que demonstra a união do partido", defende, os militantes. Os mais jovens, pelo menos.
Porque também existem os comunistas críticos, os que abandonaram o PCP: "Fui sancionado pela posição que tomei de modificação da linha e funcionamento do partido. Queria internamente uma vida mais democrática e o abandono do velho centralismo democrático com o objectivo da admissão de discordâncias. Há partidos com reconhecimento de facções", diz Carlos Brito, antigo militante e ex-candidato presidencial. "Uma diferença de opinião facilmente se torna em dissidência. O centralismo democrático é um filtro porque as ideias oficiais são da direcção e são escrutinadas pela própria direcção. O confronto livre das ideias não existe porque é filtrado por sucessivos patamares de hierarquia", diz João Semedo, que faz parte do movimento renovação comunista e foi eleito deputado, como independente, nas listas de deputados do Bloco de Esquerda. Entrou para o PCP em 1972. Demitiu-se do Comité Central em 1991 e em 1998 abandonou o partido. Foi o ano em que um movimento que pretendia mudar a vida interna do partido foi esmagado pela força do voto e levou à expulsão de vários dirigentes, entre eles Mário Lino, o ex-ministro do PS. Lino entrou no partido em 1964 através do movimento estudantil. Em 1979 bateu com a porta: "A principal desilusão foi o que se passou com a União Soviética. O próprio partido planeou um golpe de estado palaciano para retirar Gorbatchev do poder e o PCP apoiou isso."
"A posição do PCP face ao PS também suscitou sempre uma grande discussão interna. O PCP sempre tratou o PS como uma espécie de inimigo principal, uma barreira que impedia o PCP de subir mais. Depois do 25 de Abril não fazia sentido que o sistema do partido continuasse a ser muito dirigido pelos órgãos deste partido. Havia uma falta liberdade de discussão e uma aspiração muito grande de uma discussão mais aberta", diz Mário Lino. Ainda hoje, a solidariedade internacional impera entre os comunista. À falta de democracia e eleições livres em Cuba, os comunistas portugueses contrapõem a gratuitidade da saúde e do ensino, nunca esquecendo o embargo dos EUA. "O PCP não defende o modelo de Cuba, mas acredita que o povo tem de decidir o seu destino", diz Ricardo Guerra, coordenador da JCP Cascais e Oeiras.
Ricos e pobres, a zona de Cascais e Oeiras são duas das regiões do país com maiores rendimentos per capita. Talvez por isso, o PCP não tem aqui grande influência, sendo que só 20 membros da JCP estão activos. "É mais difícil que pessoas de famílias muito ricas permaneçam no partido, são excepções as que ficam. Mas também essas famílias são muito menos na sociedade", diz Ricardo Guerra, 21 anos, que deixou de dar aulas de natação para ser funcionário do partido. "O comunista não pode ser só o desgraçadinho, o pé descalço, o pão de 15 dias dentro da algibeira e que anda aí a esconder-se para que ninguém o veja. E quem pensa isso está muito enganado", afirma Fernando Ramos, vereador da Câmara Municipal da Amadora.
O PCP tem vindo a perder influência eleitoral desde a revolução de 1974: "O PCP, logo após o 25 Abril, obtinha 20% hoje fica pelos 6%. Não consegue demonstrar capacidade de renovação independentemente de ter pessoas de grande mérito. Como partido e organização está muito maniatado e a tendência é a de ir perdendo influência", afirma Mário Lino. "Não há nenhum partido com um tão grande número de militantes em funções importantes que o tenham abandonado e o PCP paga um preço muito alto por isso", acrescenta o antigo ministro das Obras Públicas.
Mas, para o ex-deputado Carlos Brito, a situação de crise económica que se vive pode ser uma lufada de ar fresco para o partido: "Os ideais do comunismo neste momento têm um novo fulgor devido à crise do mundo capitalista: isso leva muita gente a voltar os olhos para o que Marx dizia. Muitas das soluções que aponta para a humanidade sensibilizam os jovens e o PCP tinha boas condições de uma nova expansão da sua influência mas tem de procurar dar uma resposta mais actual aos problemas." Em tempos de crise as pessoas precisam de dar a volta à situação: "O PCP tem coisas incompatíveis com a religião, o destino está nas nossas mãos e não na mão de Deus. Geralmente, [os comunistas] não são católicos porque não é seja como Deus quiser, não é ter fé, mas sim lutar por uma vida melhor", afirma o coordenador da JCP em Cascais, Ricardo Guerra. E o deputado do BE, João Semedo, ainda hoje acredita que os comunistas estão "do lado certo da vida e da História." Mário Lino, longe dos tempos da disciplina férrea do partido, ainda hoje janta todos os dias 21 de Janeiro com antigos camaradas. "Nesse dia de 1965 foi muita gente presa pela PIDE, incluindo eu. Por esta altura juntamo-nos sempre. Este ano chegámos ao fim do jantar a cantar músicas de intervenção e a recitar poemas contra a PIDE."
"É impossível que os meus amigos me vejam pela rua e não digam "Oh camarada!" Não me chamarem camarada é já não ser eu, já não é a mesma coisa", afirma Nuno Gama Freire. "No momento em que dizemos que somos comunistas já não há volta a dar. Levámos a injecção atrás da orelha e pronto já não se pode desbaptizar. É para sempre."