"Que lado nosso é esse, feliz diante da desgraça alheia? Quem é esse em nós, que ri quando o outro cai no chão da vida?"
Sempre que leio certas notícias, é inevitável reflectir sobre a nossa condição humana, a nossa capacidade para o mal, a sordidez, a humilhação do ser humano sobre o outro. A tendência para a morte, não para a vida. Para a destruição, não para a criação. Para a mediocridade confortável, não para a audácia, a criatividade e o fervor que podem ser produtivos. Para a violência demente, não para a conciliação e para a humanidade.
E vejo que isso se expande dariamente nos jornais, na televisão, no cinema, nos livros e mais livros: se um santo filósofo disse que o ser humano é um anjo montado num porco, eu diria que o porco é desproporcionalmente grande para tal anjo.
E interrogo-me sem respostas: Que lado nosso é esse, feliz diante da desgraça alheia? Indiferente ao que nos rodeia? Quem é esse em nós (eu não consigo fazer isso, mas nem por essa razão sou santo), que ri quando o outro cai na chão da vida? Quem é esse que aguarda a gafe alheia para se divertir, para amesquinhar, para denegrir? Ou se o outro é traído pela pessoa que ama ainda aumenta o conto, exagerando, e espalhando isso aos quatro ventos – talvez depois correndo para consolar falsamente o atingido? Que tipo de gente nos tornámos? Anjos e demónios?
O que é essa coisa em nós, que dá mais ouvidos ao comentário maligno do que ao elogio, que sofre com o sucesso alheio e corre para cortar a cabeça de qualquer um - sobretudo próximo, que se destacar um pouco mais que seja da mediocridade em geral? Quem é essa criatura em nós que não tem partido nem conhece lealdade, que ri dos honrados, debocha dos fiéis, mente e inventa para manchar a honra de alguém que está a trabalhar pelo bem? Desgostamos tanto do outro que não lhe admitimos a alegria, algum tipo de sucesso ou um pequeno reconhecimento que seja? Quantas vezes ouvimos comentários como: "Ah, sim, ele tem uma mulher carinhosa, mas eu já soube que ele continua um devasso". Ou: "Pois, ela conseguiu um bom emprego, porque deve estar a sair com o chefe ou um assessor dele". Mais ainda: "O filho deles mudou de colégio, mas parece que...". Outras pérolas: "Ela é uma mulher bonita, mas quanto silicone já meteu, quantas plásticas...".
Detestamos o bem-estar do outro. O porco em nós exulta e sufoca o anjo, quando conseguimos despertar sobre alguém suspeitas e desconfianças, lançar algum tipo de calúnia ou requentar outras que já estavam esquecidas: mas como pode o outro dar-se bem, ver o seu trabalho reconhecido, ter admiração e aplauso, quando nos refocilamos na nossa nulidade?
Nada disso! O que nós queremos é provocar sangue, cheirar as fezes, vêr miséria, causar medo, queremos a fogueira, o relampejar do ódio.
Não todos - nem sempre, eu sei. Mas que em nós espreita esse monstro inimaginável e poderoso, ou simplesmente medíocre e covarde, como é a maioria de nós, ah!, isso sim - espreita. Afia as unhas, palita os dentes, sacode o comprido rabo, ajeita os cornos, lustra os cascos e, quando pode, dá a sua investida. Ainda que seja um comentário aparentemente simples e inócuo, uma pequena lembrança pérfida, como dizer: "Ah! sim, pois... ele é um médico brilhante, um advogado competente, um político honrado, uma empresária capaz, uma boa mulher, mas eu já soube que...", e aí se começa a lançar o mal cheiroso petardo. A forquilha do embuste.Esse procedimento tão nacional vai bem mais longe do que simples calúnias e maledicências. Reside e manifesta-se explicitamente no assassino moral que se imola para matar dezenas de inocentes num templo, incluindo entre as vítimas mulheres e crianças... e se dirá que é por idealismo, pela fé, porque o seu Deus quis assim, porque terá em compensação o paraíso para si e para os seus descendentes. É o que acontece tanto ao ladrão de uns ténis como ao violador de meninas(os), e no delinquente drogado (ou não) que, para roubar 20 euros ou um telemóvel, mata uma jovem grávida ou um estudante mal saído da adolescência, liquida a pauladas um casal de velhotes, invade casas e dizima famílias inteiras na sua pacatez de vida modesta.
Digam-me o que quizerem, a sordidez e a morte vivem adormecidas em nós, e nem todos conseguem domesticar isso. Ninguém me diga que o criminoso agiu apenas movido pelas circunstâncias, “de resto ele, até é uma boa pessoa”. Ninguém me diga que o caluniador é um bom pai, um filho amoroso, um profissional honesto, e apenas exala o seu mortal veneno porque busca e ama a verdade. Ninguém me diga que somos bonzinhos, e só por acaso lançamos o tiro fatal, feito de aço ou expresso em palavras. Ele nasce desse traço de perversão e sordidez que anima o porco, violento e covarde, e faz chorar o anjo que existe dentro de nós.
Carlos Ferreira
algarve_reporter@mail.telepac.pt