O delito tem-se convertido numa das formas de funcionamento da sociedade global, e requer a utilização de uma tecnologia de ponta para que tenha êxito. Os delinquentes das altas esferas utilizam com maestria os meios que a sociedade lhes dispõe para se infiltrarem nas estruturas legais da economia e das finanças mundiais. Nunca vão parar à prisão ou são condenados. O Estado de Direito, que acreditávamos estar assente e destinado a avançar ao mesmo ritmo que o crescimento económico e os avanços tecnológicos, titubeia e enfraquece.
É uma evidência salta aos olhos, ainda que o seu enunciado seja um tabu: as finanças modernas e o crime organizado sustentam-se mutuamente. Tanto uma como o outro necessitam para expandir-se que se suprimam os regulamentos e os controles estatais. Em 1990, o Gafi, organismo criado pelo G7 para lutar contra a lavagem de dinheiro a nível internacional, fez as primeiras previsões do fluxo financeiro, estimando a cifra de 122 bilhões de dólares o volume total de negócios. Entretanto, há quem avance esta cifra até aos 500 bilhões de dólares por ano.
Os mercados ilegais têm muito em comum com o resto das indústrias legais.
Existem compradores e vendedores, majoritários e minoritários, intermediários e distribuidores. Têm uma estrutura de preços, balanças, ganhos e, raramente, perdas. Ocorre uma terrível contaminação de toda a economia.
Estamos, portanto, perante uma mudança de perspectiva. Como existe uma esfera financeira desconectada da economia real, tudo o que ocorre nesse planeta virtual escapa por completo ao estrabismo convergente, ajudado, ademais, por uma forte miopia das policiais, juízes, políticos, banqueiros, empresários. Este universo incorpóreo navega pelos mercados financeiros burlando-se no espaço e no tempo, dos Estados e das suas polícias, do Fisco e dos seus juízes. Logo, estarão os demais, os honestos sobreviventes, com os meios insuficientes para escapar das duras leis da gravidade fiscal dentro da economia e da vida ordinária terrena.
Com os pés na terra, os que vivem no mundo real, e dentro da realidade da vida dura, estes últimos sempre têm quer prestar contas de algo, ou têm algo a temer, perante a polícia, o fisco ou os juízes, que todavia, podem sempre encontrar um remoto motivo para os interpelar e deter. Neste reduzido e pequeno mundo, onde sobrevivem os simples mortais, vítimas de um sistema perverso e implacável, a policia persegue os pequenos delinquentes porque são ao mais fáceis de se denunciar e apanhar. O mesmo já não acontece com a grande delinquência e o crime organizado, que vai aparecendo nalgumas acções policiais e tribunais para fazer a excepção e se mantenha a regra anterior.
No grande universo das finanças virtuais, pelo contrário, já não há policiais, e os ladrões são tão ou muito mais criminosos que os demais. Entretanto, não há promotores de Justiça com um discurso maniqueísta e simplório para os perseguir e encarcerar.
Em quase todo o mundo o processo de lavagem de dinheiro obedece a características muito peculiares. Entretanto, em Portugal, talvez por motivos da sua herança político-cultural e acentuada disciplina das camadas mais pobres, oferece algumas características próprias.
Desta forma, existem incontáveis maneiras de lavagem de dinheiro e as mais comuns são as conhecidas aplicação no mercado imobiliário, "apostas" em casinos, apólices de seguros, o empréstimo endossado, o stand ou revendedor de carros usados, o "ferro-velho" e, uma das mais bizarras e ainda hoje pouco faladas, através de instituições religiosas (igrejas).
É incrivelmente surpreendente como, em Portugal, as instituições religiosas, ou igrejas, prosperam vertiginosamente, superando os sectores produtivos que trabalham arduamente. Soa também curioso como é atractivo ao poder político aos chamados "pastores", "bispos", "apóstolos", tanto participando activamente na vida política, como em estreita relação com os políticos mais influentes.
Ressalte-se que essa "bênção" não é um privilégio dos mercadores da fé só neste país. Também em Espanha, na Aldeia Sevilhana de "Palmar de Troya", despontou, de um simples casebre, um colossal castelo, tendo à frente um indivíduo que se autodenominou "Papa Gregório" ou o "Papa de Palmar de Troya". As recentes investigações policiais noticiadas pelos jornais, dão conta da descoberta de que esta Igreja servia para lavagem de dinheiro. Vultosas somas eram "doadas" à igreja e depois era feita a inversão mediante o pagamento de comissão de, em média, vinte por cento.
A lavagem de dinheiro através dos mercados imobiliários, tal qual virou uma praga na cidade de Marbella, no litoral Sul de Espanha, também constitui uma atractiva forma de despistagem de dinheiro em Portugal, nomeadamente no Algarve. Entretanto, as instituições precisam de sobreviver, o poder político precisa de se manter para adestrar e conservar resignada uma grande legião de menos favorecidos, os que vivem à margem da cidadania. Para isso, defendem e instituem sanções penais mais severas e perseguem cruel e implacavelmente os suspeitos e autores de delitos pequenos, para meros efeitos de estatísticas criminais. Atacam os efeitos ignorando ou fingindo ignorar as causas.
Este é o cenário detestável do mundo real, oposto ao mundo virtual e paradisíaco dos afortunados criminosos insuspeitos e "honrados homens de bem". A lei, com todo o seu rigor, a implacabilidade de alguns cegos promotores de Justiça, do engodo do adágio "dura lex sede lex", do qual se valem verdugos juízes (que mandam para a prisão e nela mantêm indivíduos de pequeno furto, etc), só existe para os sobreviventes do mundo real, dos que têm os pés no chão.
Os detentores do poder económico, receosos do risco de alguma insurgência popular contra a ordem estabelecida ou contra o "Estado Democrático de Direito" (como tão profanamente usam esta expressão durante as recentes descobertas no mundo do futebol, pervertendo o seu sentido), apelam pela instituição de penas mais severas, pela política da "tolerância zero", pela indisfarçável "criminalização da pobreza".
Enquanto reinar essa hipocrisia, que nos conduz a todos ao lamaçal do caos, onde até mesmo nos lugares mais insuspeitos, aqueles que deveriam representar o último refúgio na busca de esperança aos oprimidos, as igrejas, passam a ser meros instrumentos de cooperação para com as ideias políticas dominantes, e para com o crime organizado, onde a avareza afiada obtém generosos lucros à custa da fé cega, o resultado é que - não restam dúvidas, a paz para todos infalivelmente virá.
Será a paz dos cemitérios.